Só hoje

Se você quiser eu fico hoje.
Fico bem juntinho.
Fico agarradinho.
No teu corpo.
Te faço carinho.
Te cuido.
E podemos brincar.
E dançar.
Até mesmo conversar
sobre as ondas do mar.

Se você pedir eu fico hoje.
Mas pede com jeitinho.
Meu coração não está acostumado
com todo esse carinho.

Pede pra te amar.
Pede beijinhos.
Pede o que você quiser.
Mas só por hoje meu bem.
Não peça mais amanhã.

Amanhã eu já vou ter partido.
Sairei bem devagarinho.
E só quero que você guarde o que foi bom.

Se você quiser eu fico hoje.
Mas não me pede pra ficar pra sempre.
Por que não ficar
vai fazer você me amar eternamente.

Ane Souza
01/11/13

Marcha

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas de sono
com a ideia do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumenta.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
– e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tem, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta vida
isento de tudo, isento…
Não há lágrimas nem grito:
apenas consentimento.

Cecília Meireles 

Apresentação

Aqui está minha vida – esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz – esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu poético momento.

Aqui está minha herança – este mar solitário,
que de um lado era amor, e do outro, esquecimento.

Cecília Meireles

Canção

Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
– e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo de se acabar.

Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.

Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto.Chorar.

Cecília Meireles

Sou humana

Do corpo
à alma
Sou feita
De sentimentos.
Completamente
Inacabados.

Delicadamente humana
Humanamente delicada.

Sou humana
E como isso é estranho
Queria ser felina
E viver a correr
Brincando.

Sem ter o que dever
Sem ter o que falar.

Ah, quem dera
Se nessa vida,
Conseguisse, às vezes,
Não me expressar.

Silenciar meus sentimentos
Não transformar
De meus sentidos
Uma tormenta
A quem vem me regar.

Ane Souza
16/03/2015
02:49am

O Homem que Contempla

Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anônimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha ereto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.

Rainer Maria Rilke